Jesus Histórico
Jesus Histórico
POR RLOPES
15/04/14 11:27
Em plena
Semana Santa, achei que seria o caso de abordar a fundo aqui no blog a questão
da historicidade do personagem central destes sete dias: Jesus de Nazaré, é
claro. Como o papo é complicadíssimo e o tempo de todo mundo (principalmente o
meu, hehehe) é limitado, o único jeito é “quebrar” a discussão em vários posts.
Este, portanto, é o preâmbulo — a ideia é publicar mais um post por dia até a
Sexta-Feira Santa. Allons-y (como diria um certo doutor)!
Primeiro de
tudo:
POR QUE MEXER NESSE VESPEIRO?
Como o
título da série de posts deixa claro, a ideia é defender que algum sujeito
chamado Jesus de fato nasceu em Nazaré (ou nasceu em Belém e cresceu em Nazaré,
como queiram), andou pelas estradas da Galileia e da Judeia pregando e foi
crucificado em Jerusalém lá pela terceira década do século 1º d.C. A questão é
que, embora a esmagadora maioria dos historiadores sérios, tanto religiosos
quanto agnósticos ou ateus, defenda que esse personagem existiu, há uma pequena
minoria de amadores, e um ou outro historiador sério (em geral não especialista
na análise das fontes bíblicas como documentos históricos), que diz que Jesus é
basicamente um mito, inventado por Paulo ou por outros membros da primeira geração
de cristãos. É claro que as afirmações desse pequeno grupo se tornaram
populares, viraram “virais” na internet e seduziram boa parte das pessoas que,
com bons ou maus motivos, querem dar umas porradas na crença cristã
tradicional.
Bem, meu
objetivo é demonstrar que essa ideia, desculpaí, beira a pseudociência. Se você
usar os critérios SECULARES, “não religiosos”, que todos os historiadores usam
para estudar o resto da Antiguidade clássica, e for honesto e equilibrado com
os dados, a tendência esmagadora da lógica é aceitar a historicidade básica de
Jesus de Nazaré.
MAS DIZEM
QUE O CARA ANDOU SOBRE AS ÁGUAS E VOLTOU DOS MORTOS! COMO ISSO PODE SER
HISTÓRICO?
Calma,
calma, não criemos pânico. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Quando digo “historicidade básica”, quero dizer exatamente isso: os documentos
históricos que chegaram até nós da Antiguidade são suficientes pra estabelecer
que um sujeito chamado Jesus de Nazaré existiu, morreu lá pelo ano 30 d.C. e
fez algumas coisas interessantes, como atuar como pregador, reunir discípulos e
se indispor com as autoridades em Jerusalém. Usar esses documentos pra “provar”
que ele tinha poderes sobrenaturais é outra história, completamente diferente —
aliás, não é história, é teologia. O ponto central desta série de posts é tão
somente demonstrar que não é razoável negar a existência histórica da figura. O
resto está aberto à discussão.
É FÁCIL PRA VOCÊ FALAR, AFINAL VOCÊ É CATÓLICO,
MANÉ!
Nunca
escondi de ninguém e já abordei diversas vezes aqui no blog a minha crença
religiosa. É claro que isso cria um viés, ainda que inconsciente, em favor de
“acreditar em Jesus” — do ponto de vista da fé, bem entendido. Minha pergunta
é: E DAÍ? Se eu fosse ateu, não é improvável (ainda que não fosse garantido)
que existisse um viés contrário para “desacreditar”. Viés é que nem bumbum,
gente: todo mundo tem o seu. A questão não é fazer com que os vieses inexistam
— isso é impossível! –, mas sim fazer todo o esforço para “colocá-los entre
parênteses” (ou colchetes!), para tentar, como metodologia, enxergar os dados
que temos em mãos da maneira mais desapaixonada possível, deixando as
evidências falarem, em vez de torturá-las para que elas digam o que queremos
que elas digam.
Só pra
constar: embora seja cristão, eu sei — e não tenho problemas pra aceitar — que
um sem número de narrativas da Bíblia (a Criação, o Dilúvio, o Êxodo, muito do
que se diz sobre David e Salomão etc.) não tem como ser história “real” no
sentido como a entendemos hoje. O caso de Jesus, porém, é diferente DO PONTO DE
VISTA HISTÓRICO — e não apenas do ponto de vista da fé.
A QUESTÃO DA “INVISIBILIDADE ARQUEOLÓGICA”
É claro que,
em tese, todo o debate sobre a (in-)existência do Nazareno poderia ser
resolvido de uma tacada só. Bastaria que alguma escavação em Jerusalém —
digamos, na área da antiga Fortaleza Antônia, a praça-forte do poderio romano
na Cidade Santa — achasse uma ordem de execução assinada por Pôncio Pilatos para
um certo galileu. Ou que achassem a tumba com os restos mortais do dito cujo, o
que, de quebra, enterraria o “mito da Ressurreição” (não, a tal “tumba de
Jesus” que acharam e puseram em documentários de TV a cabo muito provavelmente
não é a dele, mas isso é tema pra outro post).
Infelizmente,
a chance de uma descoberta dessas acontecer é próxima de zero. Explico.
O fato,
brava gente, é que boa parte das pessoas comuns do Império Romano, em especial
os camponeses de uma população conquistada como os judeus da Galileia e da
Judeia, são virtualmente invisíveis para nós com base na arqueologia. Sabemos
um bocado sobre suas casas, seus instrumentos de trabalho, suas sinagogas e
seus utensílios de cozinha, mas não conseguimos “colocar um rosto” nesse povo
todo: não sabemos seus nomes, as histórias que contavam em volta da fogueira, o
que pensavam, nada — a começar pelo fato de que quase todos, se não todos,
devem ter sido analfabetos. É verdade que temos monumentos funerários de
padeiros, açougueiros e ex-escravos romanos, que contam um pouco da história
dessas pessoas, mas é preciso lembrar que esse é o povo “que deu certo”: gente
que veio de baixo e acabou conseguindo uma posição econômica de destaque, e/ou
tinha patronos com mais dinheiro e poder do que eles — fazer um monumento
funerário era caro, pra começar.
Nada disso
parece ter sido o caso de Jesus, de sua família ou de seus discípulos,
oriundos, como eram, de um vilarejo de 200 pessoas nas colinas da Galileia. É
natural que eles tenham sido “invisíveis” — ou, melhor dizendo, só tenham se
tornado visíveis por meio de documentos literários, criados décadas depois da
morte de Jesus por discípulos que tinham nível educacional e econômico mais
elevado. É, aliás, o que acontece com todos os outros camponeses da Antiguidade:
suas caras e suas vozes só aparecem quando são registradas — e,
inevitavelmente, alteradas — pelos textos de gente que não pertencia à camada
social deles.
O fato de
que os Evangelhos retratam Jesus como alguém que arrebanhou milhares de seguidores
antes de ser crucificado não refresca muito as coisas. Primeiro, é claro que os
Evangelhos podem estar exagerando (até sem má intenção, apenas por distância
cronológica) o número de seguidores de Jesus. Mas, fora isso, é importante
lembrar que profetas, pregadores e milagreiros eram um fenômeno comum na
Palestina do século 1º d.C. Entre a ascensão de Herodes, por volta de 40 a.C.,
e a revolta judaica contra Roma em 66 d.C. — um século, portanto — há pelo
menos uns dez casos registrados de rebeldes messiânicos ou profetas que
bagunçaram o coreto na região. Nada indica que, para aquele momento inicial,
Jesus era mais importante do que esses sujeitos.
JESUS DE NAZARÉ E LEÔNIDAS DE ESPARTA: UM ESTUDO DE
CASO
Queria,
agora, chegar ao cerne do nosso papo de hoje. O fato é que, se formos usar a
escassez de indícios arqueológicos diretos e a falta de fontes propriamente
contemporâneas, escritas por “testemunhas oculares da história”, para rejeitar
a historicidade de Jesus, teríamos de rejeitar a historicidade de… bem, de uns
70% dos personagens da Antiguidade clássica, ou talvez mais. Ficaríamos só com
os monarcas e os membros da alta nobreza. E olhe lá: pra quem assistiu os dois
filmes “300″, é bom lembrar que não daria pra aceitar a historicidade de
ninguém menos que Leônidas, um dos reis de Esparta, o sujeito que morreu
defendendo a Grécia da invasão persa em 480 a.C.
Vejamos:
qual a primeira e mais confiável fonte documental histórica sobre a vida de
Leônidas? Os textos do historiador grego Heródoto, que escreveu sobre as
guerras entre gregos e persas por volta de 440 a.C., 40 anos depois da morte de
Leônidas (coincidência ou não, Marcos, o mais antigo Evangelho, foi escrito uns
40 anos depois da morte de Jesus). Parece que Heródoto entrevistou alguns dos
ex-combatentes dos dois lados, mas muito do que escreve tem algum cheiro de
invenção épica ou de convenção literária, como o relato sobre a luta
desesperada dos espartanos para proteger o corpo de seu rei depois que ele
tombou.
Tem alguma
evidência arqueológica contemporânea sobre a existência do hómi? Um túmulo, um
epitáfio, moedas com a cara dele? Nada. Zero. Depois de Heródoto, temos apenas
os textos do historiador grego Éforo (que só chegaram até nós por fragmentos),
que escreveu mais de um século depois das Termópilas, por volta de 350 a.C. E,
muito mais tarde, textos da época romana, produzidos por gente como Diodoro
Sículo e Plutarco.
Dá para
fazer o mesmo exercício que fiz com Leônidas com uma série de personagens da
Antiguidade clássica. Sob esse ponto de vista, Jesus é um personagem
histórico muito mais bem documentado do que Leônidas, já que há fontes
independentes cristãs, judaicas e pagãs, todas compostas de algumas décadas a
um século depois da morte dele, a respeito do Nazareno.
Meu próximo
post começa a abordar essas fontes, partindo de Flávio Josefo, um historiador
judeu cujos textos parecem ter sido alterados por copistas cristãos posteriores
— mas, ao que tudo indica, não de maneira irreparável. Até lá!
——
POR RLOPES
16/04/14 10:43
Antes de ir
direto ao ponto, um padrão que notei nos comentários ao primeiro post foi o de
muitas pessoas citando os paralelos entre Jesus e figuras míticas divinas que
morrem e ressuscitam. Beleza. No entanto, como deixei abundantemente claro no
texto anterior, o objetivo aqui não é debater a historicidade dos fatos
milagrosos relatados sobre Jesus nos Evangelhos, mas apenas e tão somente
estabelecer um esqueleto de fatos que nos permita avaliar a probabilidade de
ele ter existido como ser humano normal. Questões sobre fatos sobrenaturais são
questões teológicas e filosóficas, não históricas. Então, esses paralelos com
outras deidades antigas NÃO VÊM AO CASO. Podem, de fato, ter sido acrescidos
tardiamente à figura de Jesus. A questão aqui é apenas determinar se havia uma
figura histórica original que poderia ter servido de “ímã” para essas ideias
religiosas que circulavam havia milênios no Oriente Próximo. Beleza? Avante,
então.
O objetivo
do post de hoje é examinar a principal fonte judaica do século 1º d.C. que
menciona Jesus (só pra esclarecer, fonte judaica não cristã, claro; é provável
que uns 90% do Novo Testamento tenha sido escrito por cristãos de origem
judaica). Estamos falando de José ben Matias, mais conhecido por seu nome
romano, Tito Flávio Josefo (37 d.C.-100 d.C.).
Sei que não
é muito cristão da minha parte, mas pra mim é difícil não pensar em Josefo como
uma figura sebosa. Descendente da aristocracia sacerdotal de Jerusalém, ele
acabou sendo escolhido como líder das forças judaicas na Galileia durante a
grande revolta de seu povo contra os romanos (que foi de 66 d.C. a 73 d.C.).
Encurralado com um punhado de seus homens pelas forças do general Vespasiano em
Yodfat (Jotapata), ele sugeriu um pacto suicida para que os soldados judeus não
caíssem nas mãos dos romanos — mas deu um jeito de ser o único sobrevivente.
Afirmou então ter tido uma visão divina de que Vespasiano seria o próximo
imperador de Roma e, ao comunicar isso ao general, caiu nas graças do romano,
ajudando as legiões como negociador no decorrer da luta. Vespasiano de fato
assumiu o controle do Império e recompensou Josefo com a cidadania romana, uma
pensão e tempo livre para escrever, o que ele fez abundantemente em suas duas
principais obras, “Antiguidades Judaicas” e “A Guerra dos Judeus”. A primeira
obra foi escrita por volta do ano 90 — mais ou menos na época do Evangelho de
João, ou mesmo do Evangelho de Lucas.
Pois bem:
nos manuscritos em grego (Josefo escrevia em grego) que chegaram até nós há
duas menções a Jesus, além de outra a João Batista, em “Antiguidades Judaicas”.
Vamos começar com a mais curta, pra facilitar e também porque raramente houve
dúvidas sobre sua autenticidade, até porque ela dá pouco pano pra manga.
Nessa parte
da obra, Josefo está relatando o que aconteceu em 62 d.C., quando assume o
poder em Jerusalém o sumo sacerdote Hananias, o Jovem. Como tantos políticos
daquela e desta época, ele aproveita o novo poder pra acertar as contas com
alguns desafetos, convocando seus cupinchas do Sinédrio (o “Senado” judaico da
época) pra condenar seus inimigos sem a anuência do governador romano.
“Sendo
portanto esse tipo de pessoa, Hananias, pensando ter uma oportunidade favorável,
pois que Festo havia morrido e Albino ainda estava a caminho [ou seja, os
governadores romanos estavam na fase de "troca de guarda" na Judeia],
convocou uma assembleia de juízes e colocou diante dela o irmão de Jesus, o
chamado Cristo, de nome Tiago. Acusou-os de terem transgredido a lei e os
entregou para serem apedrejados.”
(A
propósito, a tradução é do especialista americano John P. Meier, autor da
monumental obra em quatro volumes, e ainda inacabada, “Um Judeu Marginal”,
sobre o Jesus histórico. Quem quiser conferir essa discussão com muuuuito mais
detalhes fará bem em conferir o primeiro volume da obra.)
Só pra
deixar bem bonitinho e explicado, a frase em grego usada por Josefo é “ton
adelphon Iesou tou legomenou Christou” — a gramática grega deixa claro que
“legomenou”, ou seja, “chamado”, se refere a Jesus, e não a Tiago.
Note que o
tom do texto é absolutamente neutro, em especial graças ao particípio grego que
eu acabei de detalhar acima. Note ainda que um irmão de Jesus (ou primo, para
os católicos) chamado Tiago era uma figura importantíssima na comunidade cristã
de Jerusalém na época em que Paulo estava escrevendo suas cartas. Finalmente,
os relatos sobre a morte desse Tiago que existem na obra de um cristão do
século 2º, Hegesipo, são parecidos, mas não idênticos, ao desse breve
comentário de Josefo. Tudo isso leva a esmagadora maioria dos historiadores a
avaliar que ao menos essa passagem de Josefo é autêntica e representa uma
menção extra-Evangelhos a Jesus.
CORROMPIDO, MAS NÃO TOTALMENTE
Agora é que
o bicho pega, mui gentil leitor. O que você diria desta passagem de Josefo,
anterior, no texto, à que vimos agora há pouco? Pra ajudar, vou destacar em
negrito as coisas mais estranhas.
“Por esse
tempo apareceu Jesus, um homem sábio — se na verdade se pode chamá-lo de homem. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas
que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muito
judeus quanto entre muitos de origem grega.Ele era o Cristo. E quando Pilatos, por causa de
uma acusação feita por nossos homens mais proeminentes, condenou-o à cruz,
aqueles que o haviam amado antes não deixaram de amá-lo. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia,
novamente vivo, exatamente como os profetas divinos haviam falado deste e de
incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve esse nome a ele, não
desapareceu.”
Oooops. É
indiscutível que tem alguma coisa errada com esse trecho, ao menos da maneira
como o lemos acima. Josefo não era cristão e, como vimos na primeira passagem,
no máximo diz que Jesus era o “chamado” Cristo. Está claro que copistas
cristãos andaram fazendo das suas com o texto do historiador judeu. A questão,
porém, é saber se eles inventaram a passagem do zero ou se modificaram uma
passagem que já existia.
Bem, de
novo, a esmagadora maioria dos historiadores coloca suas fichas na
probabilidade de que o texto original de Josefo continha, sim, uma passagem
sobre Jesus, que foi adulterada — algo porcamente — por copistas cristãos. A
questão é saber como reconstruir a passagem original. Qualquer exercício desse
tipo é hipotético, mas veja, de qualquer modo, como ficaria o texto sem os
negritos acima, na reconstrução de John P. Meier:
“Por esse
tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Pois ele foi o autor de feitos
surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele
ganhou seguidores tanto entre muito judeus quanto entre muitos de origem
grega. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita por nossos homens
mais proeminentes, condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não
deixaram de amá-lo. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve esse nome a
ele, não desapareceu.”
Pode parecer
que eu tirei um coelho da cartola com esse parágrafo “pós-cirurgia plástica”,
mas há boas razões para acreditar que uma coisa desse tipo era a versão
original de Josefo. Primeiro, veja como o texto flui muito melhor sem as partes
em negrito. O que o(s) copista(s) cristão(s) fizeram foi adicionar apartes que
interrompem o raciocínio do texto e que, além de não casar com a teologia
judaica de Josefo, truncam totalmente os parágrafos.
Além disso,
um dos grandes aliados das pessoas que estudam textos antigos hoje em dia é o
mapeamento computacional do vocabulário e da sintaxe dos autores antigos. O
computador simplesmente conta pra você quantas vezes fulano utiliza a palavra tal ou a conjugação tal
do verbo em grego. Ora, ocorre que as passagens em negrito, do ponto de vista
comparativo, têm muito mais pontos em comum com o vocabulário do Novo
Testamento (não diga!) do que com o vocabulário de Josefo. Por outro lado, sem
os “enxertos”, a segunda versão do texto que eu coloquei aqui bate de forma
muito mais confortável com o resto da obra de Josefo. As coisas parecem começar
a fazer mais sentido.
Alguns
outros detalhes importantes: se a ideia é defender que a passagem inteirinha
foi forjada, é difícil explicar porque um copista cristão se daria ao trabalho
de falar das previsões dos profetas e da ressurreição no terceiro dia, mas
esqueceria um detalhe óbvio: Jesus, em todos os Evangelhos, só prega para
judeus. Essa coisa de “ganhou seguidores tanto entre muito judeus quanto entre
muitos de origem grega” não faz sentido — a não ser quando consideramos que
Josefo está escrevendo num momento em que já há muitos cristãos não judeus e
está simplesmente “retrojetando” essa situação para a época da vida de Jesus.
Ademais, por que cargas d’água um cristão iria chamar a si e aos seus de
“tribo” (“phylon”), um termo que em grego tem uma conotação clara de
ascendência racial comum? E por que não explicaria a razão para a condenação de
Jesus por Pilatos, abundantemente explorada nos Evangelhos (a de se proclamar
Messias/Cristo)?
É isso. O
resumo da ópera, para quem conseguiu chegar até aqui:
- Há pelo
menos uma menção a Jesus numa fonte judaica não cristã do século 1º d.C. Essa
fonte diz que ele era chamado “o Cristo” e menciona a morte de um “irmão” dele
conhecido do Novo Testamento;
- É provável
que essa mesma fonte tenha ainda mais informações sobre Jesus — o fato de ele
ser um mestre, de atrair seguidores, de ser perseguido pelas autoridades
judaicas e de ser sentenciado por Pilatos –, embora o texto original tenha sido
corrompido por copistas cristãos.
——
POR RLOPES
17/04/14 06:26
O tema do
nosso post de hoje, o qual, misericordiosamente (para os leitores, ao menos),
será bem mais curto que os anteriores da série, são as referências a Jesus em
textos de autores pagãos que escreveram menos de um século depois da morte do
Nazareno. Tais referências são raras e breves, mas nem de longe são
inexistentes. Mais importante ainda, nenhum historiador sério das últimas
décadas se arrisca a dizer que elas são invenções de copistas cristãos que
viveram depois dos autores — em parte porque o conteúdo desses textos costuma
ser virulentamente anticristão.
TÁCITO
Cornélio
Tácito (56 d.C.-118 d.C.) é o autor dos “Anais”, escritos no começo do século
2º d.C. Ao falar do célebre incêndio de Roma, supostamente causado de caso
pensado pelo imperador Nero em 64 d.C., Tácito diz o seguinte.
“Assim, para
fazer calar o rumor [de que ele tinha mandado colocar fogo na cidade], Nero
criou bodes expiatórios e expôs às torturas mais refinadas aqueles que o povo
chamava de cristãos, um grupo odiado por seus crimes abomináveis. Seu nome
deriva de Cristo, que, durante o reinado de Tibério, tinha sido executado pelo
procurador Pôncio Pilatos. Sufocada por um tempo, a superstição mortal irrompeu
novamente, não apenas na Judeia, terra onde se originou esse mal, mas também na
cidade de Roma, onde todos os tipos de práticas horrendas e infames de todas as
partes do mundo se concentram e são fervorosamente cultivadas.”
Olha, se
alguém me explicar convincentemente por que um cristão teria a manha de forjar
uma descrição tão elogiosa (#sóquenão) da própria fé, eu dou a senha do meu
cartão de crédito pra esse gênio. Note que Tácito “acerta” tanto o imperador
quanto o governador da Judeia que estavam no poder quando Jesus foi executado
(embora tecnicamente Pilatos fosse prefeito da Judeia, e não procurador).
PLÍNIO, O JOVEM
Caio Plínio
Cecílio Segundo (61 d.C.-112 d.C.) foi governador do Ponto e da Bitínia
(regiões que ficam na atual Turquia) no começo do século 2º d.C. Sua
correspondência com o imperador Trajano é um dos mais antigos indícios fora da
Bíblia de perseguições romanas — esporádicas — aos cristãos. Ao relatar ao
imperador os estranhos costumes (do ponto de vista romano) da seita cristã, ele
menciona, entre outras coisas: “Eles [os cristãos] costumavam se reunir num dia
marcado antes da aurora e cantar um hino a Cristo, como se ele [Cristo] fosse
um deus” — o que dá a entender que o tal Cristo não era um deus, segundo Plínio.
Só de
passagem, é interessante notar que, como governador, o que Plínio condenava nos
cristãos era sua “obstinatio” ou “pertinacia” — basicamente, sua teimosia em
não aceitar os costumes romanos, como os sacrifícios aos deuses do Estado
romano. Isso, para ele, já era razão suficiente, caso a pessoa se recusasse por
três vezes a renunciar à seita, para determinar uma execução.
SUETÔNIO
Caio
Suetônio Tranquilo (69 d.C.-122 d.C.) é o nosso caso mais ambíguo e complicado.
Em sua biografia de Nero na série “Vida dos Doze Césares”, ele também faz
menção à perseguição aos cristãos:
“Também
foram punidos os cristãos, classe de homens dados a uma nova e traiçoeira
superstição.”
OK, isso
indica a presença de cristãos em Roma menos de 30 anos depois da morte de
Jesus. A passagem mais duvidosa, porém, está na biografia do imperador Cláudio,
que reinou antes de Nero.
“Como os
judeus estavam constantemente causando distúrbios por instigação de Cresto, ele
[Cláudio] os expulsou de Roma.”
Pois é,
Cresto, com “e”, e não “Cristo” — mas a maioria dos historiadores acredita que
essa seja uma referência a Jesus e uma prova de uma imensa viajada de Suetônio.
Ele teria entendido o nome errado e assumido que “Cresto” seria o líder ainda
vivo de uma facção judaica em Roma, um perturbador da paz, em suma (os
cambistas do Templo de Jerusalém, cujas mesas foram reviradas por Jesus,
provavelmente concordariam com ele).
————–
E é isso,
basicamente. Acho que as lições principais dessas fontes pagãs são:
1)Nem tudo
no mundo é interpolação cristã;
2)Fica claro
que, durante muito tempo, o movimento iniciado por Jesus não passava de um
grupo insignificante de radicais de origem judaica aos olhos do poderio do
Império. Daí a invisibilidade quase total deles.
POR RLOPES
20/04/14 19:37
Antes de
avaliarmos as fontes cristãs do século 1º d.C. sobre Jesus, vale a pena fazer
uma exposição brevíssima dos critérios de historicidade que hoje são consensuais
entre os historiadores para examinar os documentos antigos a respeito do
Nazareno. Esses critérios são usados não apenas para determinar a historicidade
básica da figura, claro — se ele simplesmente existiu ou não –, mas também pra
tentar distinguir o que provavelmente aconteceu com ele de coisas que parecem
ser elaborações literárias e teológicas posteriores.
Sem mais
delongas, portanto, vamos aos critérios. De novo, meu principal guia aqui é o
americano John P. Meier, autor da monumental série de livros “Um Judeu
Marginal”.
1)O critério do constrangimento
O conceito
por trás desse critério é absurdamente simples de explicar, mas aplicá-lo é um
pouco mais complicado. O critério do constrangimento parte do pressuposto de
que, por mais que os antigos cristãos acreditassem em coisas que, para céticos
modernos, soam completamente absurdas, como profetas crucificados que voltam à
vida, ainda assim eles tinham uma boa noção do que pegava mal e do que pegava
bem na sociedade de seu tempo. Em outras palavras: dados sobre a vida e a morte
de Jesus que poderiam colocar tanto o Nazareno quanto os seus seguidores numa
posição constrangedora, vergonhosa ou embaraçosa e ainda assim eram mantidos nas narrativas dos Evangelhos ou em outra literatura
cristã têm uma chance elevada de serem históricos. Esses dados seriam parte tão
forte da tradição histórica a respeito do sujeito que seria impossível
escamoteá-los.
É claro que
o fato número 1 corroborado por esse critério é a crucificação. Seria uma
estupidez considerável inventar do zero um Salvador do Mundo que, por acaso,
acabou morrendo por meio do suplício mais humilhante do mundo antigo, reservado
para escravos rebeldes e outras “não pessoas”.
Deve-se
ressaltar que é importante levar em conta o que seria constrangedor no contexto cultural da época.
Exemplo: a gente poderia pensar que o “Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste” pronunciado por Jesus na cruz é corroborado por esse critério.
Como assim Deus Filho perdeu a fé em Deus Pai? Mas, dentro da tradição judaica
do justo que cobra explicações de Deus, uma tradição que aparece nos Salmos,
isso não é tão constrangedor.
2)O critério da descontinuidade
Tal critério
consiste em examinar coisas que são descontínuas, ou seja, que aparecem nos
relatos sobre Jesus mas não são típicas nem do judaísmo de seu tempo nem das
primeiras comunidades cristãs. Não faria sentido um evangelista ou apóstolo
inventar esse tipo de coisa se seu próprio grupo não pratica o que Jesus fazia
ou pregava. Exemplo: o hábito do Nazareno, relatado em diversos textos, de
beber e comer à vontade, e ainda por cima em companhia de gente como cobradores
de impostos e prostitutas. Tanto judeus, antes de Jesus, como cristãos, depois
dele, valorizavam o jejum religioso. (Aliás, esse fato também se encaixa no
critério do constrangimento, como você deve ter reparado.)
3)O critério da múltipla confirmação de fontes
Vamos
explorar o dito cujo em detalhes no próximo post, mas é o que o nome diz: se o
mesmo fato básico é relatado por várias fontes independentes, ele provavelmente
é mais seguro do que dados presentes numa fonte isolada.
É preciso
muito cuidado para usar esse critério porque antes é preciso determinar se uma
fonte é independente ou não. Por exemplo: as narrativas da paixão e morte de
Jesus nos Evangelhos canônicos talvez remontem todas, na origem, a
reelaborações literárias do Evangelho de Marcos, o mais antigo, o que impediria
estudiosos de usar esse critério sobre o tema do suplício do Nazareno.
“Independente”
tem um sentido técnico importante em pesquisa histórica: é a fonte que não pode
ser remontada a outra do ponto de vista literário, ou seja, a fonte que não
copiou simplesmente suas informações de outro texto, mas se baseia numa
tradição — muitas vezes oral — independente. Isso pode ser inferido a partir de
diferenças significativas de vocabulário, ideologia e estrutura narrativa,
entre outras coisas.
A conta
varia, mas é consensual entre historiadores que, só contando os Evangelhos, há
pelo menos três fontes distintas sobre a vida de Jesus: Marcos, o documento Q
(provavelmente um documento escrito com ditos de Jesus que foi usado tanto por
Mateus quanto por Lucas) e a tradição joanina, do Evangelho de João. Isso sem
falar, claro, nas cartas do apóstolo Paulo e em algumas outras epístolas do
Novo Testamento.
Voltando aos
exemplos: uma das coisas mais prováveis a respeito de Jesus é que, em vida,
acreditava-se que ele realizava milagres. (Digo “acreditava-se”, não “fazia”,
porque provar que ele realmente fazia é impossível; por outro lado, milagreiros
eram figuras comuns tanto em ambientes judaicos quanto pagãos na Antiguidade).
O dado está registrado nas nossas três grandes fontes: Marcos, Q e João.
4)O critério da coerência
Esse
critério é algo escorregadio. Significa que, se não formos propriamente capazes
de corroborar algo com base nos critérios mais firmes que vimos anteriormente,
mas se o dado analisado casar bem com o resto da figura de Jesus que passou a
ser montado a partir dos critérios anteriores, podemos aceitar esse novo dado
como provável.
5)O critério da cruz
“Um Jesus
cujos atos e palavras não tivessem provocado antagonismo entre as pessoas,
especialmente entre os poderosos, não é o Jesus histórico”, escreve Meier. Esse
é o cerne do critério da cruz. Os romanos e a elite judaica eram implacáveis,
mas não eram psicopatas completos. Fora de tempos de guerra, não era qualquer
um que acabava numa cruz. Era preciso desafiar, de alguma maneira, o poder
estabelecido.
Isso
significa que visões excessivamente róseas de Jesus — a de um mestre preocupado
pura e exclusivamente com o “bem estar espiritual” de seus seguidores, por
exemplo — provavelmente não refletem o Nazareno real.
Em tempo:
feliz Páscoa pra todo mundo!
POR RLOPES
22/04/14 15:29
Chegou a
hora de enfrentarmos as fontes antigas que trazem mais informações, mas também
mais dúvidas, sobre Jesus: os documentos cristãos do século 1º d.C.,
obviamente. “Mas peraí”, alguém poderia objetar com toda a justiça, “isso não é
roubalheira? Afinal, se a fonte é cristã, obviamente o autor achava que Jesus
existiu, certo?”
Claro — quer
dizer, não tão claro; há algumas hipóteses doidas que tentam mostrar que, para
o apóstolo Paulo, por exemplo, Jesus foi apenas um ser divino, e não alguém de
carne e osso que morreu na cruz. Mas o que a metodologia de análise histórica
faz é tentar superar esse viés analisando detalhadamente as fontes cristãs e
vendo se a maneira como elas concordam — e também divergem! — a respeito da
figura de Jesus bate com o padrão encontrado em outras fontes históricas sobre
figuras mais neutras.
Lembre-se do
sentido técnico preciso de “fonte histórica independente” que eu expliquei no
post anterior. Posso me autocitar? Vejam o que eu disse: fonte
independente é “a fonte que não pode ser remontada a outra do ponto de
vista literário, ou seja, a fonte que não copiou simplesmente suas informações
de outro texto, mas se baseia numa tradição — muitas vezes oral — independente.
Isso pode ser inferido a partir de diferenças significativas de vocabulário,
ideologia e estrutura narrativa, entre outras coisas”.
Fonte
independente, portanto, não é fonte “isenta” — até porque, gente linda, isso
não existe. Todos os historiadores e escritores antigos (e modernos!) possuem
vieses ideológicos e políticos, ainda que muitos tentem se esforçar ao máximo
para produzir narrativas que levem em conta todos os fatos e não pendam
injustamente para um lado ou para o outro.
MAS AS FONTES CRISTÃS NÃO SÃO SUPER TARDIAS?
De novo, são
e não são. Devo lembrar aqui que relatos de testemunhas oculares a respeito da
imensa maioria dos eventos da Antiguidade são bastante raros. OK, Tucídides
escreveu sobre a Guerra do Peloponeso, na qual lutou, e o próprio Júlio César
escreveu sobre seu papel na conquista da Gália e nas guerras civis romanas (taí
um excelente exemplo de fonte tecnicamente independente, mas nem um pouco
isenta). Por outro lado, o “pai da história”, Heródoto, fez o mais antigo
relato sobre as guerras entre gregos e persas escrevendo cerca de meio século
depois do fim da contenda, e os principais autores que escreveram sobre os
primeiros imperadores romanos — gente como Suetônio e Tácito — estavam
separados por ainda mais décadas de seus principais personagens.
O consenso
entre os historiadores atuais é que os livros do Novo Testamento provavelmente
incorporam material transmitido oralmente por testemunhas oculares, mas estão
longe de terem sido escritos por tais testemunhas. São, apesar disso, quase
universalmente considerados textos do século 1º d.C., escritos entre 40 anos e
70 anos depois da morte de Jesus, o que é uma distância temporal decente,
embora longe do ideal, no contexto da historiografia produzida na Antiguidade
clássica. De novo, é comparável a Heródoto (que, aliás, também curtia falar de
ocorrências milagrosas em seus relatos).
Breve parêntese: uma pessoa
me “chamou na chincha”, como a gente diz aqui em São Carlos, dizendo que todos
os textos do Novo Testamento são do século 2º d.C. Descobri que um ou outro
especialista defende isso, mas a visão esmagadoramente mais aceita é a que
expus acima. Uma dataçãomuito tardia dos
Evangelhos, e dessa parte da Bíblia como um todo, não faz muito sentido por uma
série de razões. A primeira tem a ver com os próprios manuscritos: o mais
antigo fragmento de papiro do Novo Testamento é do Evangelho de João —
universalmente considerado um texto mais tardio que o dos demais evangelistas,
por sua teologia complexa e por talvez conhecer e usar o Evangelho de Marcos —
e tem idade em torno do ano 125. Dificilmente teríamos a sorte de achar “o”
primeiro manuscrito. Muito provavelmente é uma cópia de um texto mais antigo, e
até uma cópia de uma cópia.
Outro
problema, talvez mais importante ainda, vem da evidência interna — de como os
textos do Novo Testamento funcionam, digamos. O retrato que eles traçam é de
comunidades cristãs ainda incipientes e desorganizadas, bastante próximas do
judaísmo, em vários casos. Há pouca ou nenhuma distinção formal de funções
dentro das igrejas, a figura do bispo ainda não emergiu (exceto em algumas
cartas atribuídas a Paulo as quais, pelo visto, na verdade não são dele) etc.
Só que, a partir do começo do século 2º d.C., todo esse quadro já começa a
mudar. É natural pensar que algumas décadas teriam sido necessárias para esses
desenvolvimentos. O quadro faz muito mais sentido quando se pensa nos textos do
Novo Testamento como, em grande medida, produções do século 1º d.C. mesmo. Fim
do parêntese.
AS DATAS MAIS ACEITAS
Dito isso,
quais são as datas estimadas para as nossas principais fontes cristãs sobre o
Jesus histórico dentro do Novo Testamento? Bem, o apóstolo Paulo escreveu do
fim dos anos 40 ao fim dos anos 50 do primeiro século. O Evangelho de Marcos
provavelmente foi concluído por volta do ano 70. Mateus e Lucas podem ou não
ter suas próprias fontes independentes de dados sobre Jesus (são as chamadas
tradições M e L), mas é quase certo que usaram uma fonte escrita anteriormente,
hoje perdida, o chamado documento Q (abreviação do alemão “Quelle”, ou seja,
“fonte”), que continha quase que só falas de Jesus e poderia ser até anterior a
Marcos. De qualquer modo, o consenso é que Mateus e Lucas teriam escrito entre
os anos 80 e 90. Finalmente, tudo indica que o Evangelho de João é dos anos 90
a 100.
E tem mais,
na verdade, se a gente não restringir o olhar apenas aos Evangelhos e às cartas
de Paulo. Dica: o “Apocalipse de João” não foi escrito pelo mesmo autor do
Evangelho com esse nome só porque eles são xarás. A linguagem e a visão
teológica dos dois livros é bem diferente. O mesmo vale para um dos livros mais
enigmáticos do Novo Testamento, a Carta aos Hebreus, durante muito tempo
atribuída — erroneamente — a Paulo. Também dá para argumentar que ao menos um
evangelho apócrifo, o Evangelho de Tomé, também deriva seus dados de uma fonte
(oral ou escrita) independente sobre Jesus, talvez tão antiga quanto o
“documento perdido” Q. E por aí vai — a maioria desses textos tem as
“impressões digitais” de terem surgido em comunidades cristãs em estado ainda
primitivo, no contexto das primeiras quatro ou cinco décadas depois da morte de
Jesus.
OK, mas esse
monte de gente não poderia ter simplesmente copiado suas informações de uma
fonte original — Paulo, digamos, que é quase sempre o coitado escolhido pra
Cristo (sem trocadilho) quando alguém defende a ideia de um Jesus “mítico”,
inventado? Em tese, poderia, mas não é nem de longe o que parece acontecer.
DIVERSIDADE
Isso porque
cada uma dessas fontes tem uma perspectiva muito peculiar e seletiva a respeito
de Jesus e de sua vida terrena. A começar por Paulo, que fala muito pouco da
vida e dos ensinamentos de Jesus — ele sabe que ele era judeu, que era
considerado descendente de David, que foi crucificado, que fez uma “última ceia”
com seus discípulos, mas não vai muito além disso em suas cartas. Para obter
realmente detalhes “biográficos” sobre Jesus e informações mais claras sobre o
que ele ensinava, é preciso recorrer aos Evangelhos, que são depositários de
tradições que são claramente independentes das de Paulo, apesar de haver pontos
de contato entre elas. Da mesma maneira, textos como o Apocalipse ou a Carta
aos Hebreus apresentam visões da pessoa do Nazareno que se desenvolveram de
modo independente das dos Evangelhos.
Para dar só
um exemplo, enquanto Paulo tem esse aparente descaso por detalhes biográficos
de Jesus, Marcos começa sua narrativa com Cristo já adulto, enquanto Mateus e
Lucas sentem a necessidade de relatar um nascimento divino. Por outro lado,
João vê Jesus como divino “desde a eternidade” — curiosamente, uma ideia que,
ao menos do ponto de vista embrionário, aparece de forma independente em Paulo.
Essa
diversidade é importante porque, se por um lado, ela sepulta a ideia uma
teologia cristã única e imutável que surgiu com os apóstolos e perdurou desde
então, por outro lado ela indica que gente com as mais variadas tradições
culturais e visões de mundo, em vários cantos do Império Romano, passou a
interpretar a figura de Jesus a partir de um ponto mais ou menos definido no
tempo. O grego meio tosco e com forte influência do aramaico do Apocalipse não
é mesma coisa que a linguagem muito mais elegante (e inspirada na versão grega
do Antigo Testamento) do Evangelho de Lucas, a qual, por sua vez, é bem
distinta da narrativa algo “viajante” e filosófica do Evangelho de João.
Mas como
sabemos que cada um desses escritores conservou tradições genuínas sobre Jesus,
em vez de simplesmente dar sua interpretação literária ao personagem, tirada da
sua própria cabeça? Porque, muitas vezes, eles sentem a necessidade de
preservar o que receberam da tradição oral, mesmo que sua própria perspectiva
teológica não bata com os detalhes dessa tradição. Um dos grandes exemplos é
Lucas, autor tanto do evangelho que leva seu nome quanto dos Atos dos
Apóstolos.
Lembre-se de
que Lucas retrata a concepção virginal de Maria pelo Espírito Santo, dando a
Jesus uma natureza divina desde o nascimento. Mas, ao apresentar a pregação dos
apóstolos diante dos judeus logo depois da Ressurreição de Jesus no livro dos
Atos dos Apóstolos, Lucas apresenta “fósseis” teológicos que contradizem
diretamente essa visão. Por exemplo, nas falas do apóstolo Pedro a respeito de
Jesus nesse livro, Cristo é retratado como um homem que realizava milagres por
meio do poder de Deus, e diz-se que “Deus glorificou seu servo Jesus” — sem
sinal de que Jesus fosse Deus encarnado. Essas incongruências indicam que a
tradição, embora maleável, não era um vale-tudo.
Se a figura
de Jesus foi forjada por Paulo ou por algum outro líder da primeira geração
cristã, fica muito difícil explicar porque, em tão pouco tempo, essa
multiplicidade de perspectivas emergiu. O cenário é muito mais coerente com um
fenômeno único — a vida do Jesus histórico — que, com o tempo, engendrou uma
série de interpretações diferentes.
Ainda falta
o epílogo. Até amanhã!
POR RLOPES
23/04/14 09:46
É hora de
tentar amarrar as pontas soltas, gentil leitor. Após uma análise exaustiva (em
mais de um sentido, hehehe…) das fontes antigas a respeito de Jesus e dos
critérios usados para tentar determinar a historicidade dos fatos a respeito
dele, minha ideia é concluir com o que, de brincadeira, eu costumo chamar de…
A CONSPIRAÇÃO MAIS BURRA DA HISTÓRIA
Estou sendo
irônico, claro. O que quero dizer é que, se Jesus fosse mesmo uma figura mítica
inventada pelos primeiros cristãos (em geral, o principal suspeito apontado
como mentor dessa invenção é o apóstolo Paulo), essa foi a conspiração mais
burra da história humana.
Para
entender melhor o que isso significa, vamos voltar às fontes cristãs usando os critérios de historicidade que expliquei neste post. O mais importante e universalmente usado é o critério do
constrangimento, que expliquei sucintamente da seguinte maneira:
“O critério
do constrangimento parte do pressuposto de que, por mais que os antigos
cristãos acreditassem em coisas que, para céticos modernos, soam completamente
absurdas, como profetas crucificados que voltam à vida, ainda assim eles tinham
uma boa noção do que pegava mal e do que pegava bem na sociedade de seu tempo.
Em outras palavras: dados sobre a vida e a morte de Jesus que poderiam colocar
tanto o Nazareno quanto os seus seguidores numa posição constrangedora,
vergonhosa ou embaraçosa e ainda assim eram mantidos nas narrativas dos Evangelhos
ou em outra literatura cristã têm uma chance elevada de serem históricos. Esses
dados seriam parte tão forte da tradição histórica a respeito do sujeito que
seria impossível escamoteá-los.”
Se esse
critério é válido, a primeira e mais importante coisa a explicar é porque os
“inventores do Jesus mítico” dar-se-iam ao trabalhar de criar um Salvador
crucificado. Uma invenção dessas não significa apenas escolher retratar Jesus
como alguém que foi submetido ao suplício mais humilhante da Antiguidade,
reservado para criminosos de beira de estrada, escravos rebeldes e outros
zé-ninguéns. Significa também colocá-lo debaixo de um dos piores estigmas
religiosos judaicos: o livro do Deuteronômio, um dos que contêm as leis dadas
por Deus a Moisés e ao povo israelita, diz que a pessoa crucificada é “maldito
de Deus”. Se a ideia inicial era converter os judeus à crença em Jesus — e
todas as nossas fontes indicam isso –, a coisa mais burra do mundo seria inventar
uma crucificação que nunca ocorreu.
Por outro
lado, olhando a questão pelo ângulo da pregação dirigida por Paulo e por outros
líderes cristãos aos pagãos do Império Romano, também parece uma burrice sem
tamanho inventar um líder divino judeu. E isso não apenas por causa da
distância cultural entre judaísmo e paganismo antigos — afinal, o que o cidadão
médio de Corinto ou de Roma sabia sobre as profecias judaicas sobre Abraão ou
David? –, mas também porque uma forma embrionária, mas considerável, de antissemitismo,
era comum no Mediterrâneo antigo, mesmo antes da guerra entre judeus e romanos
que levou à destruição do Templo de Jerusalém no ano 70. Do ponto de vista
estratégico, inventar um “deus-homem” judeu é, de novo, uma grande bobeada.
Finalmente,
não faz o menor sentido, e parece simplesmente coisa de gente estúpida,
inventar do zero um Messias judaico criado em Nazaré da Galileia, com sotaque
galileu, cercado de discípulos galileus. O herdeiro do rei David não deveria
vir de uma das grandes famílias aristocráticas da Judeia, ou pelo menos ser
alguém de um lugar menos tosco e mais apresentável? O absurdo é tão patente que
vemos os Evangelhos fazendo todo tipo de malabarismo retórico para lidar com
esse fato, desde argumentar que, na verdade, Jesus nasceu em Belém (Mateus e
Lucas) até brincar com o preconceito anti-Nazaré, citando-o, e depois dar a
entender que o local de nascimento de Cristo era irrelevante (João). De novo,
para que inventar uma informação que atrapalha tanto?
UM TIPO DE MESSIAS NUNCA VISTO
A imagem de
um Messias crucificado, morto e ressuscitado hoje nos parece inevitável, mas
isso é só efeito de 2.000 anos de tradição cristã. Na origem, a ideia era tanto
constrangedora — como eu argumentei acima — quanto “descontínua” com o judaísmo
do século 1º d.C. (encaixando-se ao menos parcialmente no critério histórico da
descontinuidade, segundo o qual um fato sobre Jesus tem mais chances de ser
histórico se ele não corroborar o que o judaísmo e/ou os primeiros cristãos
defendiam).
Explicando
um pouco melhor: havia todo tipo de expectativa divergente sobre o Messias
entre os judeus do primeiro século. Alguns esperavam simplesmente um rei humano
da linhagem de David que os libertaria da dominação romana e traria a
independência política de Israel. Outros esperavam uma figura mais
sobrenatural, semidivina, que não apenas seria um grande guerreiro como também
instauraria um reino eterno de paz e justiça na Terra, com Jerusalém como
“capital do mundo”. Caramba, havia até alguns, como a seita provavelmente
responsável por criar os manuscritos do mar Morto, que esperavam DOIS Messias,
um Messias rei e outro Messias sacerdote.
O que
ninguém esperava, no entanto, era um Messias torturado e crucificado pelos
romanos.
Foi preciso
muita criatividade teológica — e muita fé em Jesus da parte dos seus primeiros
discípulos, claro — para pegar esse fato triste, humilhante e constrangedor e
tentar argumentar que era exatamente isso que Deus havia previsto por meio dos
profetas nas Escrituras judaicas. Antes da morte de Jesus, não passava pela
cabeça de nenhum judeu pegar textos do Antigo Testamento como a descrição do
Servo Sofredor no livro de Isaías, ou as passagens sobre o sofrimento do justo
nos Salmos, a dizer que aquilo tudo tinha de acontecer com o Messias. Seria uma estupidez descomunal inventar tudo
isso se a ideia era só criar uma nova divindade com apelo pop.
PROVAR UMA NEGATIVA?
Quem defende
a tese do Jesus mítico costuma dizer que o ônus da prova, ou seja, a obrigação
de demonstrar algo, está do lado de quem quer defender que ele existiu, da
mesma maneira que é obrigação de quem diz que Deus existe provar que ele existe
mesmo. Afinal, dizem eles, não se pode “provar uma negativa”, ou seja, provar
que algo não existe —
basta lançar dúvidas razoáveis sobre a existência.
Eles que me
desculpem, mas nesse caso o raciocínio deles abusa do princípio acima exposto.
Afinal, eles também estão tentando provar algo, que é a ideia de que Jesus foi
um mito inventado. E, para isso, eles precisam demonstrar como e por que essa
invenção foi feita.
Acho justo
afirmar que os fatos que expus acima mostram que a tese da invenção mítica é
improvável, ainda que não impossível. O princípio da pesquisa histórica, assim
como o de qualquer outra ciência, é claro: a hipótese que consegue explicar com
mais simplicidade e lógica o conjunto de dados disponíveis vence. Dado tudo o
que sabemos, faz muito mais sentido postular que um profeta real saiu de
Nazaré, pregou Palestina afora e foi crucificado por volta do ano 30 d.C.
——
http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2014/04/22/desculpai-mas-jesus-existiu-fontes-cristas/Darwin e Deus
PerfilReinaldo
José Lopes é jornalista de ciência e autor do livro Além de Darwin
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